quinta-feira, junho 19, 2008

Na planície dourada





O sol era um braseiro na manhã adiantada. Visto o castelo, feitas as deambulações pelas vielas de brancas paredes, o jardim chamava com promessas de sombra e descanso. Entrei, passo lesto em direcção ao muro que dava direito a uma ampla vista. A máquina pronta a disparar, pois claro. Paisagem a perder-se no horizonte longínquo convenientemente registada “para mais tarde recordar…”. E depois olhei o jardim com olhos de ver. Bonito, maneirinho. Um café, um coreto, alguns bancos à sombra e um estranho aparelho no meio, como estátua ou ornamento. Sem saber bem o que era, fotografei de vários ângulos, como convém. Sobretudo quando não se sabe bem o que é…

“Minha senhora, sabe, isso era a aguadeira daqui.”

Um dos homens sentados nos bancos tinha-se levantado e fez-se voz de recordações de tempos de meninice ou talvez até um pouco mais tarde na vida.

“Sabe a senhora que, quando não havia água canalizada, andavam com isto puxado a bois e davam água ao povo. O condutor sentava-se naquela cadeirinha, está a ver?”

Estava a ver. Daí a “aguadeira”. Percebi e agradeci-lhe ter ficado a perceber o que era “aquilo”.

“Ah, não imagina o que a rapaziada gostava quando isto andava nas ruas. É que às vezes, para sacudir os moços que se penduravam, o condutor deitava água lá por trás da maquineta. E não é que era isso mesmo que a rapaziada queria?”

E o riso do homem fez-se claro como naqueles tempos. Depois, com que envergonhado, foi dizendo:

“A senhora desculpe. Está a gostar do jardim? E aquela vista? Vi que tirou fotografias.”

Acho que o meu olhar lhe disse o quanto tinha gostado do jardim, da terra, daquela humanidade transbordante e franca. Com um sorriso meio triste rematou:

“Sabe, temos que nos entreter com qualquer coisa. Já viu, tantos velhos…”

Tinha visto, sim. Naquelas terras da planície dourada, a vida parece parar nos seus olhos. Observam o passar do tempo. Repositórios vivos duma sabedoria que com eles se perderá.

12 comentários:

maria josé quintela disse...

memórias douradas pelo brilho dos olhos!



um beijo.

Anônimo disse...

Este já era moderno e tinha pinta!
Bebi muita água fresquinha, da mina, do Sr. Afredo, que carregava uma carroça, puxada a burro, cheia de "bilhas" de barro.
Bom, lá tenho que ir beber um copo de água que me fez sede!

JPD disse...

Belíssima recordação.

na Zambujeira do Mar, havia -- Agora já não funciona -- uma fonte que abasstecia as casas dos veraneantes.

Era Fonte dos Amores.

Dali, hiante, o oceano abria o horizonte inesgotável.
Um regalo para trcar afectos.

A agua era transportada em talhas, em carrinhos de capacidade dupla.

Os locais -- Tudo isto muito antes do 1974 -- gastavam a tarde num vai-vem esgotante.

Era assim...

CASSIANE SCHMIDT disse...

Ai que lindo! Simplesmente delicioso de se ler...meus olhos repousaram em cada detalhe de suas palavras, isso é maravilhoso!

Bom final de semana!

Manuel Veiga disse...

bela e desencantada evocação.

retenho "naquelas terras da planície dourada, a vida parece parar nos seus olhos".

poesia. genuína.

José Louro disse...

Olá Maria Laura
que crónica tão limpa.
Abraço.

mena maya disse...

Como eles gostam de contar de passar o testemunho!
Pena que haja pouca disposição para os ouvir...

Que bem nos relatas este teu encontro!
Beijinho

M. disse...

Uma beleza, este encontro.

vieira calado disse...

É preciso guardar e reavivar as memórias do passado.
Quem, dos jovens, imagina como era a vida aqui há meio século?
AS memórias fazem-se de textos e imagens que nos dão uma ideia de como era essa vida.
Gosto sempre muito destas coisas.
Tenho preparado um livro "Algarve Ontem" com imagens de há 50 e mais anos sobre as actividades da província. E, claro, ao lado vai um poema.
Bom resto de fim de semana

Memória transparente disse...

Bom trabalho fotográfico.

Laura Ferreira disse...

lindas palavras sobre velhos que eu tanto gosto, precisamente pela sabedoria... parabéns.

Twlwyth disse...

Deu-me sede esta planície. :)