domingo, março 30, 2008

Perguntas cativas




Hoje não passo pelo teu caminho
Nem noutra hora que possa prever.
Será o querer, o acaso ou o destino
Que apartam passos que julgámos certos
Nalgum dia antigo já longe no tempo
Memória perdida que em nós se afunda?
Ou leva-nos o fluir tranquilo do rio
Onde somos folhas boiando à deriva?

Perguntas seladas que queimam os lábios
Como flores de fogo recém desfolhadas.
Perguntas cativas do silêncio implícito
Palavras proibidas.

segunda-feira, março 24, 2008

Patos no quintal




Os patos viviam por ali, no rio que passava ao lado do quintal da velha casa. Um rio em que a água escasseava, a não ser quando chovia muito e de repente. As gentes da terra, sobretudo aquelas que tinham as casas ao pé do rio, já sabiam o que esperar, nessas alturas. Mas isso eram histórias antigas, algumas trágicas. Agora estávamos a falar dos patos. A mulher, que tinha a vida enraizada naquela casa, voltava lá, de vez em quando. E nunca tinha reparado naqueles dois patos. Talvez novos, na população de patos do rio que parecia crescer dia a dia. O certo é que voavam para o quintal e aí passavam as manhãs. Nem o ladrar dos cães da casa ao lado os assustava. Esgravatavam o chão seco e dormiam à sombra das árvores. Quando lhes apetecia, levantavam voo e iam poisar na água, junto aos outros que lá estavam. A mulher, dada a histórias e sonhos, achou que aqueles patos eram especiais. Quem sabe, amantes transformados em patos por alguma fada maléfica. Mas, naquela vida, tinham encontrado um reino só deles, o quintal das laranjeiras. Nenhum outro pato os seguia. Só eles por ali andavam, como se soubessem algo mais, como se guardassem um segredo. Antes de se ir embora, a mulher procurou-os e baixinho, não fossem os outros pensar que era louca, disse-lhes que lhes deixava o reino, como se fosse necessário dar-lhes algo de que eles já eram donos.

quarta-feira, março 19, 2008

Reflexões (II)




Páscoa. Passagem da morte para a vida, pelo sacrifício. Renascer. Ressurreição para os cristãos. "Pessach" judaica, passagem da escravidão para a libertação. Através, também, de um sacrifício, o dos primogénitos do Egipto. Renascimento da natureza, após o sacrifício necessário da sua morte invernal. Assim era nos tempos antigos. Assim é hoje, quando, sem saber, repetimos os rituais. Os fofos coelhinhos e os saborosos ovos. Símbolos de fertilidade. Renascer, sempre. Refazer o ciclo. Recomeçar.


[Desejo a quem passa uma Boa Páscoa! Ou apenas a capacidade de renascer em cada dia.]

sexta-feira, março 14, 2008

Não mais




Não serei eu
Quem te dirá as palavras finais
As que pairam entre nós
Gumes afiados sobre a pele
Nem saberás de mim
Mais do que consegues entrever
No tempo raro em que me olhas
Com saciada limpidez
Talvez aí esteja toda a verdade
Que nos é dado perceber
Não mais que uma parte do todo
Que somos
Não mais

terça-feira, março 11, 2008

Reflexões (I)




Já vos aconteceu começar a escrever sem fazer a mínima ideia do que vão pôr no papel mas tendo uma frase, uma só frase que por todo o lado murmura, fala, grita? Não é o terror da folha em branco, não estou minimamente aterrorizada porque sei que seja o que for que escreva terá que, de alguma forma, ir encontrar esta frase que hoje me obceca :"Uma nesga de céu”. Não o céu todo, nem sequer o azul sem nuvens. Só um pequeno, ínfimo pedaço daquela imensidão. Não será aquilo a que todos temos direito? As vidas cinzentas do dia a dia, a monotonia que nos faz repetir os mesmos gestos às mesmas horas tapam-nos a nossa “nesga de céu”. Levantar às mesmas horas, maquinalmente cumprir a rotina diária, comer às mesmas horas, nos mesmos sítios, com as mesmas pessoas… Onde está a cor da vida? E, sobretudo, onde está o azul? Claro, escapamos de quando em vez, ou porque nos encontramos face a face com a beleza sob qualquer forma ou porque nos defrontamos com sentimentos que nos transcendem e algo acende em nós a luz que revela a paleta multicolor. Entrevemos então a nossa “nesga de céu”. Rara, preciosa. Dificilmente duradoura. Se o for, não lhe damos a importância devida. Distinguir nela o azul da harmonia e guardá-lo em nós nalgum canto escondido é a tarefa que perseguimos, por vezes uma vida inteira. As palavras trouxeram-me até aqui. Umas atrás das outras, sem nenhum caminho traçado à partida. E tal como comecei, sem destino certo, tenho que acabar. Porque nisto de entrever a “nesga de céu”, não há receitas, nem mezinhas. Muito menos sermões ou grandes dissertações. Ela está por aí. Procurem-na, que eu também o faço. Por vezes encontro-a, por vezes perco-a.

sábado, março 08, 2008

Dizer de ser mulher



Mão que se dá
Utero matriz de vida
Liberdade que se entrega
Hera que enleia sentimentos
Esperança luz de horas cinzentas
Raiz profunda de todas as coisas



Hoje, quero dizer de ser mulher. Mulher, feminino singular.(...)
Mulher por si. Mulher em género e corpo.



[Por ser hoje um dia que, se calhar, não devia existir. Ainda assim, um beijo especial para todas as mulheres.]

segunda-feira, março 03, 2008

Múltipla



Múltiplas cores
Duma paleta arbitrária
Múltiplos sons
Procurando a sinfonia
Partes de um todo espalhado
Nos recantos de viver
Múltipla
Sem chegar à unidade
Manta de gastos retalhos
Remendados dia a dia
Múltipla
Diversa mas tão igual
Na procura inquieta
Da luz que ilumina o voo
Da água do sol do sal
[da vida]